sábado, 14 de maio de 2011

Literatura enquanto fantasia

Senti a experiência de resgatar o hábito de escrever, e em menos de 24hs uma nova motivação surgiu para confirmar o prazer que tenho a minhas próprias expressões, deixando-me gotas feliz, muitas. Tive a oportunidade de acompanhar uma conferência de Bartolomeu Campos de Queirós, na qual reavivou em mim o desejo de dar continuidade aos pensamentos, inclusive porque ele acabou por decifrar demasiadas inquietações que eu guardei até então. A audição foi revigorante para me encontrar na satisfação. Seguirei elucidando as palavras dele.
“Acredito que a arte pede tudo aquilo que se faz com emoção, e não apenas com o conhecimento.” Parafraseando de maneira apenas semelhante, Bartolomeu inicia seu discurso com a afirmação de que a literatura é feita de fantasia. O homem vive em um eixo que ancora o presente ao passado, que nada mais é do que a fantasia do que podia ter sido feito, ou seja, as fantasias que foram perdidas a partir da escolha; e o futuro: também fantasia. O real não pertence à literatura; a fantasia é o real que ganha corpo nela. Antes de um objeto ser criado, uma viagem realizada, um momento concretizado, tudo isso passou pelo campo da fantasia. É por isso que a fantasia contesta o que se vive e permite a conversação entre o eixo passado-presente-futuro.

A literatura é fantasia porque quer indagar com o desconhecido. Nela, pode-se escrever a respeito de qualquer coisa feita, pensada, ou não. Assim, a fantasia é o que existe de mais profundo em nós, porque a gente não conta (a nossa) a todo mundo; tem gente que morre sem dizer qual é a sua. A literatura permite três passos: ler, inscrever-se no texto e adicionar um terceiro pensamento jamais editado, aquele recriado no ato de leitura, algo que passa pelo segredo do leitor. Usamos constantemente a metáfora, e o escritor a utiliza como mais do que uma figura lingüística, a fim de ser cauteloso com a própria fantasia, ao passo que dá liberdade ao leitor.

A memória, por sua vez, é patrimônio maior do homem, pois é nela que recorremos para conduzir nossas ações, permeando não apenas o vivido, mas permitindo a união entre fantasia e realidade. Bartolomeu relaciona: “quem não tem memória, não tem gratidão.” O tempo não passa, ele ancora, a memória pesa.

Todo texto literário é reflexivo e não fecha as portas para o leitor. A pessoa é induzida a ler pela significação que aquelas palavras adquiriram para ela, e não pelo que o autor disse, mas por levá-lo onde o leitor nunca esteve.

A escrita é mais complicada que a oralidade. Escrever parece fácil porque é possível pensar melhor nas palavras ou modificá-las posteriormente, rasurá-las, enquanto a palavra dita jamais retorna. Basta uma palavra para destruir uma relação, e tentar justificar o erro é cair em abismo. Contudo, a palavra organiza o caos, ela é cura, se é que a vida tem cura!

Bartolomeu discorre... “Por que eu escrevo? Sei lá! Se eu soubesse, talvez escrevesse livros de auto-ajuda, que dizem como o leitor deve fazer. Sou incoerente, inconseqüente. Escrevo talvez para que o outro me ajude a entender o problema que tenho, mas não consigo ver. Quando estudava física, aprendi em óptica, que existe uma distância mínima para que o olho humano consiga enxergar um objeto. É por isso que só poderei me enxergar nos olhos do outro.”

Escrever é passar a vida a limpo. Quando escrevo, tenho que pensar as várias coisas de implicação que eu sinto, além de escrever para o outro, que verá em mim tudo o que eu não consigo enxergar. Há então a necessidade de escrever não para encantar o outro, mas para que ele seja encantado. Todavia, encantar e negociar o encanto com o conhecimento tem sido difícil.

Cita Cecília Meireles: “As palavras estão muito ditas e o mundo muito pensado.” As pessoas estão encantadas com a tecnologia, com a facilidade das conclusões, e os comentários cada vez mais frequentemente giram em torno do que se viu na internet. A televisão é forte prova de alienação também. As novelas mostram um estilo de vida que o telespectador não tem. Entre um capítulo e outro seguem as propagandas e elas mostram o carro que você não tem, o xampu que você não tem, o tênis que você não tem. A pessoa passa então a pensar não no que tem, mas viver priorizando o que falta. A literatura, entretanto, supre a falta de outras coisas que fantasiamos.

Ao falar da criança leitora, Bartolomeu não demonstrou tamanha inquietação, disse não estar preocupado porque uma criança, mesmo a menor, pega o livro, lê de cabeça pra baixo, carrega para a cozinha, coloca debaixo do braço. Porém, a criança deixa de gostar do livro quando entra na escola. Se o professor diz “a casa é bonita”, a definição de casa bonita a um aluno pode ser a casa que tem comida; para outro, uma casa que tenha pai e mãe; para outro, uma casa amarela. Tendo em vista que a escola é servil, deve satisfações a alguém e caso a pergunta seja “como é a casa?”, não irá satisfazer ao professor se a resposta não for “bonita”. Talvez esse seja o grande problema da literatura. O livro didático é convergente, o literário é convergente. Contudo, nós não nos damos conta de lidar com a liberdade e o aluno fica reduzido a formular a própria resposta. O Brasil precisa de leitores mais reflexivos.

A escola deve ceder espaço para a literatura – incentivar a liberdade do outro. Quando somos leitores literários, descobrimos que o mundo é uma grande dúvida, e ter dúvida é ficar atento ao outro, é ser prudente. A vida é uma grande dúvida. A verdade não, é absoluta, autoritária.
O professor professa uma crença, na qual ele precisa acreditar. O primeiro objeto de leitura se encontra no olhar do professor sobre o texto, enquanto para cada um há um prazer em ler, o qual depende do sujeito, da emoção, das experiências. Cada um guarda tantas fantasias e viveu situações múltiplas! Uma música desperta não só a audição, mas também pode aguçar o tato com um arrepio; uma comida sugere não só o paladar, como pode resgatar uma memória. Eis o homem, enquanto propriedade inteira, somado de cinco sentidos. “O mundo é um grande livro sem texto e cabe ao homem o grande trabalho de colocar legenda nesse mundo”, diz Bartolomeu.

Um bom texto não nos deixa isentos. Falando em criador (e não repetidor), o autor precisa ter generosidade, para dar o melhor de si; humildade para aceitar que o melhor si mim não é o melhor para todos; ausência de inveja, para fazer o outro se sentir melhor. Isso acontece internamente. Quando lemos um livro e pensamos ‘era fulano quem devia ler’; quando vemos um pôr-do-sol e pensamos ‘era fulano quem devia estar aqui comigo’, provamos que sempre se tem alguém para chamar no imaginário. “A beleza chama o outro, porque é triste sozinha."

Mariana Lorena

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